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Há 19 anos, o Brasil perdia a imensa Cássia Eller. Para relembrar a data, reproduzo o realese que fiz para o lançamento de "Todo veneno vivo".

 

   Todo veneno vivo, um vigoroso retrato de Cássia Eller

         

            Cássia Eller era um bicho de palco. Nesse habitat especial, sua notória timidez dava lugar à exuberância artística da cantora, cuja voz rascante marcou a música brasileira nos anos 1990. Apresentações viscerais, calcadas nos seus admiráveis recursos vocais e na intuição própria aos grandes intérpretes, transformavam os shows de Cássia em experiências estéticas inesquecíveis.

        Durante três noites de dezembro de 1997, no Teatro Rival, no Rio de Janeiro, a gravadora Polygram, atual Universal Music, registrou a turnê de lançamento do disco Veneno antimonotonia, tributo a Cazuza, produzido pelo poeta multimídia Waly Salomão, diretor do antológico show/disco Fa-tal, de Gal Costa. O encontro entre Cássia e Waly, que também dirigiu o show, rendeu um espetáculo de som e fúria ainda mais potente que o álbum de estúdio. Ela era fera indomável, ele sabia e, inteligentemente, cuidou de realçar aquela potência. Além das composições de Cazuza, presença constante na discografia de Cássia, entraram no roteiro músicas de Lobão, Luiz Melodia, Renato Russo e Rita Lee, entre outros. Com 14 das músicas apresentadas, Veneno vivo, o segundo registro de show da cantora, chegou às lojas em março de 1998.

        21 anos depois, a Universal Music lança Todo veneno vivo, a íntegra do espetáculo registrado naquelas noites, nos formatos de CD duplo e álbum digital. Produzido pelo músico Rodrigo Garcia, que tocou como convidado especial, Todo veneno vivo apresenta 24 faixas, out takes inéditos, com exceção de ‘Nós’, ‘Mis penas Lloraba Yo/ Soy Gitano’, ‘Farrapo humano’ e ‘Amor destrambelhado’, extraídas do CD Veneno vivo. Um registro completo, sem intervenções e com eventuais “imperfeições”, este lançamento é uma oportunidade rara para os antigos e novos fãs (re)vivenciarem as incendiárias apresentações de Cássia Eller.

        “Eu não sei se vocês perceberam, mas eu fico muito feliz cantando as músicas de Cazuza. Bom pra caralho!” – diz a cantora com sua conhecida irreverência no início do show, que dura cerca de uma hora e meia. Além das músicas acima citadas, estão lá ‘Todo amor que houver nessa vida’, ‘Só as mães são felizes’, ‘A orelha de Eurídice’, ‘Bete Balanço’ e ‘Mal nenhum’. A identificação com o autor de ‘Malandragem’, no palco e fora dele, rendeu interpretações que revitalizam, incendeiam cada uma das canções. As vigorosas releituras de ‘Vida bandida’, ‘Todas as mulheres do mundo’ e ‘Geração Coca Cola’ também contribuem para a atmosfera roqueira do espetáculo.

        Alguns detalhes enriquecem ainda mais Todo veneno vivo. Ao fim da versão demolidora de ‘Menina mimada’ são entremeados versos extraídos do poema ‘Querido diário (Tópicos para uma semana utópica)’ de Cazuza: “Olhar o mundo com coragem do cego/ Ler da tua boca as palavras com a atenção do surdo/ Falar com os olhos e as mãos como fazem os mudos”. Em ‘Brasil’, a cantora cita ‘Coisas nossas’, de Noel Rosa, aproximando os dois poetas do cotidiano de gerações distintas no impactante início do show. Coerentemente com o exagero boêmio de ‘Por que a gente é assim?’, Cássia cantarola ‘Se eu quiser fumar, eu fumo, se eu quiser beber, eu bebo”, versos de ‘Lama’ (Paulo Marques/ Aylce Chaves), clássico samba-canção da década de 1950. Com seu gosto eclético, ela aproximava gêneros musicais, fazendo com que o rock, o samba e a MPB fossem vistos naturalmente como música brasileira. Mas as suas referências iam além das fronteiras nacionais. O hedonismo de ‘Pro dia nascer feliz’ é realçado por trechos incidentais das clássicas rollingstoneanas ‘(I can’t get no) Satisfaction’ e ‘Let’s spend the night together’.

        Todo veneno vivo termina com ‘Eu queria ser Cássia Eller’, a canção feita por Péricles Cavalcanti em homenagem à cantora. A certa altura da faixa, se ouve alguém dizendo: “Eu também!” Faz sentido. Afinal, era uma artista de personalidade única. Quase duas décadas depois de sua precoce saída de cena, nenhuma outra cantora chegou perto dela. Antídoto contra a monotonia antes e agora, Todo veneno vivo é um fiel e vigoroso retrato do furacão Cássia Eller.

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