Pular para o conteúdo principal

Lança Perfume, 40 anos depois


Lançado em setembro de 1980 pela gravadora Som Livre, o oitavo disco solo de Rita Lee traz seu nome como título, mas ficou conhecido como Lança perfume, devido ao estrondoso sucesso da faixa que abre o lado A do long play. A contagiante marchinha pop carnavalesca (que cita Alah la ô, um clássico do gênero) com doses de disco music (a introdução que remete a What a Fool Believes, da banda The Doobie Brothers) ganhou rapidamente as programações musicais das rádios do país. Símbolo de antigos carnavais, o lança-perfume, originalmente criado para que os foliões borrifassem essências perfumadas uns nos outros, estava proibido desde a década de 1960 por seus efeitos alucinógenos. Contudo, o artefato-fetiche voltou à boca do povo graças à composição de Rita Lee e Roberto de Carvalho. Cabe lembrar que, com sua renovadora sacada pop, Lee e Carvalho produziram o melhor da marchinha carnavalesca por pelo menos três décadas. Além do Brasil, Lança perfume também fez sucesso na França, país de origem das icônicas garrafinhas de alumínio, e nos EUA, onde a canção figurou na parada Dance Club Songs, da Revista Billboard. Em Mania de você, um dos hits do álbum anterior, Rita descreve seu prazer sexual com o marido e parceiro musical. Em Lança perfume, a libido do casal voltou a ser motivo de dor de cabeça para os censores da ditadura militar ainda vigente por causa dos provocantes versos “me deixa de quatro no ato, me enche de amor”. Aquela emancipação feminina abalava os moralistas de plantão – infelizmente, nada muito diferente dos dias atuais.

A faixa seguinte, Bem-me-quer mantém o clima sacana e aliciante com seu arranjo roqueiro: “Diga que me odeia/ mas diga que não vive sem mim/ eu sou uma praga/ Maria-sem-vergonha do seu jardim/ bem-me-quer/ mal-me-qualquer”. A tão ingênua quanto antiga brincadeira romântica de despetalar uma margarida nunca foi tão divertida. Uma das duas composições assinadas apenas por Rita, a balada Baila comigo mistura chá-chá-chá com bolero para falar de amor e natureza. Segundo a artista, a música foi composta em cinco minutos após surgir em um sonho. Encerrando o lado A, a intensa Shangrilá foi criada a partir dos versos de uma obscura canção chamada Bad Trip, que havia sido censurada. O clima originalmente depressivo foi substituído por outro, amoroso e sensual. Seu ritmo meio abolerado prepara o ouvinte para o arrasa-quarteirão seguinte.

Primeira faixa do lado B, a muy caliente Caso sério virou trilha sonora de muitos casos amorosos Brasil afora, um bolero genuinamente pop que certamente consta nas listas das melhores canções românticas de todos os tempos. Nem luxo nem lixo aponta o começo de uma transformação social: o culto à saúde e ao bem-estar físico e emocional que se alastraria nas décadas seguintes; a própria Rita exploraria o tema na posterior Saúde, faixa-título do álbum lançado em 1981. João Ninguém, inspirada no último presidente da ditadura militar, o general João Baptista Figueiredo, aposta no reggae para embalar sua ácida crítica. Segunda faixa assinada apenas pela artista, o rock essencialmente paulistano Ôrra meu fecha o ótimo repertório com mais ironia: “Roqueiro brasileiro sempre teve cara de bandido” até o surgimento de Rita, como percebe-se na bela capa.

A impressionante sucessão de hits fez do álbum um marco na carreira da artista e na história da música popular brasileira. Rita Lee (1980) escancarou a guinada sonora da compositora, para quem o Rock poderia ir além. Seu flerte com o pop, ensaiado em discos anteriores, como Babilônia (1978) e Rita Lee (1979), resultou em um bem-sucedido casamento musical. A linguagem desinibida, divertida e envolvente de Rita encontrou bases sólidas na musicalidade elegante de Roberto. Produzido por Guto Graça Mello (guitarra/ percussão) e Roberto de Carvalho (piano/ guitarra/ violão/ teclados), o disco contou com a participações de outros músicos excepcionais, como Lincoln Olivetti (teclados/ arranjos de metais), Robson Jorge (guitarra), Jamil Joanes (baixo) e Oberdan Magalhães (saxofone).

Sucesso absoluto, o disco vendeu 800 mil cópias. Alçada ao panteão das cantoras brasileiras, Rita participou, no mesmo ano, do programa Mulher 80, ao lado de Elis Regina, Fafá de Belém, Gal Costa, Joanna, Maria Bethânia, Marina Lima, o Quarteto em Cy e Zezé Motta. Também na TV Globo, ela esteve presente na série Grandes Nomes, como convidada no especial João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, e estrelando seu próprio especial, Rita Lee Jones. Desde então, o Brasil passou a ter mania de Rita Lee.

40 anos depois, a gravadora Universal Music celebra a efeméride lançando a versão remasterizada do histórico álbum em vinil. Desbaratina, não dá pra ficar imune!


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Joias musicais de Gilberto Gil são reeditadas

               A Universal Music reabre seu baú de preciosidades. Desta vez, a dona do maior acervo musical do país, traz duas joias do cantor, compositor e violonista Gilberto Passos Gil Moreira, recentemente eleito imortal pela Academia Brasileira de Letras. De 1971, o disco londrino, ‘Gilberto Gil’, reaparece em nova edição em vinil, enquanto ‘Refestança’, registro do histórico encontro de Gil e Rita Lee, de 1977, finalmente ganha versão digital.             Gravado durante o exílio do artista baiano em Londres, o quarto LP de estúdio de Gilberto Gil foi produzido por Ralph Mace para o selo Famous e editado no Brasil pela Philips, atual Universal Music. O produtor inglês também trabalhava com Caetano Veloso, que havia lançado seu primeiro disco de exílio no mesmo ano. Contrastando com a melancolia expressada por Caetano, Gil fez um álbum mais equilibrado, dosando as saudades do Brasil...

50 anos de Claridade

Clara Nunes (1942 – 1983) viu sua carreira deslanchar na década de 1970, quando trocou os boleros e um romantismo acentuado pela cadência bonita do samba, uma mudança idealizada pelo radialista e produtor musical Adelzon Alves. Depois do sucesso do LP ‘Alvorecer’, de 1974, impulsionado pelas faixas ‘Menino deus’ (Mauro Duarte/ Paulo César Pinheiro), ‘Alvorecer’ (Délcio Carvalho/ Ivone Lara) e ‘Conto de areia’ (Romildo/ Toninho Nascimento), a cantora mineira reafirmou sua consagração popular com o álbum ‘Claridade’. Lançado em 1975, este disco vendeu 600 mil cópias, um feito excepcional para um disco de samba, para uma cantora e, sobretudo, para um disco de samba de uma cantora. Traço marcante na trajetória artística e na vida de Clara Nunes, o sincretismo religioso está presente nas faixas ‘O mar serenou’ (Candeia) e ‘A deusa dos orixás’, do pernambucano Romildo e do paraense Toninho Nascimento, os mesmos autores de ‘Conto de areia’. Eles frequentavam o célebre programa no qual Adelzon...

Atrás do Trio Elétrico*

A menos de dois meses do Carnaval, os ensaios técnicos na Marquês de Sapucaí e nas quadras das escolas de samba bombam e os blocos de rua se preparam. Mas existe uma turma de foliões que foge da batucada carioca, preferindo o agito baiano, embalados pelos trios elétricos. “Se você for sozinho vai encontrar muito carioca por lá”, diz o comerciante Roberto Alves, 32 anos, apaixonado pelo Carnaval da Bahia. Para ele, falta a organização na folia do Rio. “Fiquei aqui em 2008 e detestei”, conta o moço que participou de sua primeira micareta (Carnaval fora de época) em 1996, em Belo Horizonte. “Tenho uns cem abadás”, gaba-se Roberto, que já garantiu mais alguns para este ano. Outro carioca, Rodrigo Carvalho, 28 anos, começou a pagar pelos abadás em março do ano passado. “Vou para Salvador há quatro anos seguidos. O clima é ótimo, não é pesado como nas raves”, compara ele, que dividirá um apartamento com 14 amigos durante a folia dos trios. “O mais requisitado é o Me Abraça, o abadá cu...