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Extrema reverência marca o Sambabook Dona Ivone Lara


Grande nome do samba, Dona Ivone Lara ganha tributo na quarta edição da série Sambabook, do selo Musickeria, distribuída pela gravadora Universal Music. Entre os arranjos demasiadamente reverentes de Alceu Maia e intérpretes nem sempre bem escolhidos, os registros musicais apresentados em CDs e DVD soam apenas corretos, com poucos destaques e nenhum momento verdadeiramente brilhante. A aparente assepsia (apatia?) prejudica principalmente o DVD, gravado na Cidade da Música, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, sem a presença do público – e sem inventividade – por Joana Mazzucchelli. Usando sempre os mesmos enquadramentos de palco, onde os músicos estão perfilados de um lado e de outro, com o cantor no centro, o registro audiovisual carece de charme para prender o espectador em frente à tela. O cenário nem um pouco criativo contribui para a perda de interesse durante a apresentação Entre os convidados, Maria Bethânia inicia os trabalhos com ‘Sonho meu’ (Dona Ivone Lara/ Délcio Carvalho, 1978), samba dolente lançado por ela em dueto com Gal Costa no álbum ‘Álibi’. Ainda que a interpretação da cantora fique à frente da maioria das outras que se seguem, a preguiçosa escolha se mostra ainda mais inadequada quando ‘Sonho meu’ volta a ser ouvido, na já tradicional colcha de retalhos que reúne trechos pré-gravados dos convidados e a homenageada no encerramento. A baiana podia ter optado por cantar ‘Aprendi a sofrer’ (Dona Ivone Lara/ Délcio Carvalho, 1978), ‘Nos combates dessa vida’ (Dona Ivone Lara/ Délcio Carvalho, 1985) ou ‘Felicidade segundo eu’ (Dona Ivone Lara/ Nei Lopes, 1986), grandes sambas que ficaram de fora do projeto. O mano Caetano Veloso é ainda mais preguiçoso na apagada interpretação de ‘Alguém me avisou’ (Dona Ivone Lara, 1980), que ele já havia gravado, como convidado ao lado de Gilberto Gil, no disco ‘Talismã’, de Bethânia, e com a própria Dona Ivone, na série ‘Casa de samba’, em 2002.  Os bambas Martinho da Vila e Zeca Pagodinho se mostram muito mais à vontade em ‘Andei para curimar’ (Dona Ivone Lara, 1974) e ‘Minha verdade’ (Dona Ivone Lara/ Délcio Carvalho, 1976), respectivamente. Entre as cantoras, os destaques são Áurea Martins, que imprime emoção e personalidade na bela ‘Alvorecer’ (Dona Ivone Lara/ Délcio Carvalho, 1974), lançada por Clara Nunes em disco homônimo, e Mariene de Castro, baiana de canto quente, que embala ‘Sorriso de criança’ (Dona Ivone Lara/ Délcio Carvalho, 1979) com genuíno sentimento e radiante interpretação. O ‘Sambabook Dona Ivone Lara’ ressente-se da ausência de Beth Carvalho, a mais importante intérprete da obra da homenageada, e de Alcione, destaque nas edições anteriores da série. A função de eternizar a obra de Dona Ivone Lara deveria ser cumprida pelo fichário, que traz a transcrição de sessenta composições da artista, e que integra o lançamento. O registro musical teria verdadeira relevância se os convidados tivessem maior liberdade artística e os arranjos fossem mais variados. O excesso de reverência continua a embaçar a série, que poderia ser mais ousada, como foi Dona Ivone Lara, ao se destacar no misógino mundo dos compositores de samba.

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