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Cida Moreira brilha no afetivo e agridoce álbum 'Soledade'


“Havia manhãs, havia quintais naquele tempo”, recorda Cida Moreira aos primeiros acordes de ‘Viola quebrada (Maroca)’, modinha que abre ‘Soledade’, décimo disco de carreira da cantora, pianista e atriz paulista, lançado pela gravadora Joia Moderna. Impregnado de agridoce melancolia, o repertório, escolhido por Cida e pelo jornalista Eduardo Magossi, de início ecoa o passado rural já distante desta terra cabocla, tão bem retratado por Maria Bethânia no emocionante e fundamental disco/show ‘Brasileirinho’ (2003). Não por acaso, a modinha assinada pelo poeta Mário de Andrade (1893 – 1945), em 1928, lembra ‘Sussuarana’ (Hekel Tavares/ Luiz Peixoto), outro pequeno brilhante da mesma época, que voltou a luzir no referido disco/show. ‘Soledade’ é roteiro afetivo desta artista ligada à vanguarda paulistana, que compreende desde a música de viola ouvida na infância à produção assinada por jovens nomes da cena atual. Seu canto, (já) curtido e (sempre) carregado de intensões, recria com propriedade ‘Bom dia’ (Nana Caymmi/ Gilberto Gil, 1967), ainda na inicial ambiência caipira, que desemboca na existencialista ‘Um gosto de sol’ (Milton Nascimento/ Ronaldo Bastos, 1972), em trama tecida com maestria. Após o tema de domínio público ‘Moreninha’, ocorre um salto no tempo, com ‘Forasteiro’ (Thiago Pethit/ Hélio Flanders, 2010), balada urbana e contemporânea que encontra em Cida Moreira a intérprete perfeita para versos que tocam a solitude, que marcou o ótimo disco ‘A dama indigna’ (2011). Escrita por Alice Ruiz, em 1983, a vinheta ‘Poema’ (“Que importa o sentido, se tudo vibra?”) antecede a canção ‘Poema da rosa’ (1969), parceria de Jards Macalé e Augusto Boal, feita a partir de poema de Bertolt Brecht, dramaturgo alemão, cuja obra gerou o disco ‘Cida Moreira interpreta Brecht’, em 1988. A boa e teatral ‘Oitava cor’ (Luís Filipe Gama/ Tiago Torres da Silva, 2015) conduz Cida Moreira ao clima de cabaré, tão característico em sua carreira artística. Após outra vinheta, ‘Preciso cantar’ (Arthur Nogueira/ Dand M, 2013), Cida assume o piano no belo registro de ‘Feito um picolé no sol’ (Nico Nicolaiewisk, 1985), desalentada música presente em seus shows desde a década de 1980: “E feito um picolé no sol eu quero estar agora/ Pra esquecer do mal que tá lá fora; Me esperando pra cobrar a taxa/ Tá com a mão toda suja de graxa”. O sertão duro e cruel retratado por Taiguara em ‘‘Outra cena’ (1970) precede de forma sagaz, a igualmente trágica trajetória do operário de ‘Construção’ (Chico Buarque, 1971). Entre precisas pausas dramáticas da interpretação impactante, Cida Moreira reaviva o clássico da MPB, no compasso passional do tango argentino, que pauta o brilhante arranjo de Arthur de Faria. Anunciando o fim da viagem, surge ‘A última voz do Brasil’ (Tico Terpins/ Zé Rodrix/ Armando Ferrante Jr./ Próspero Albanese, 1985): “De agora em diante é tudo silêncio”, proclamam os veementes versos da canção lançada pelo icônico grupo Joelho de Porco. Entretanto, no único momento eletrônico de ‘Soledade’, Cida anuncia: “O pulso ainda pulsa’, em vibrante recriação de ‘O pulso’ (Arnaldo Antunes/ Marcelo Fromer/ Tony Bellotto, 1989), em que cita ‘A queda’ (André Frateschi, 2014). Este país cada vez mais duro ainda pode se reconectar a tempos de delicadeza, ensina a cantora, ao encerrar ‘Soledade’ com os primeiros versos da marchinha carnavalesca ‘As pastorinhas’ (Noel Rosa/ João de Barro, 1934). Cida Moreira nos fazer crer que manhãs e quintais musicais ainda são possíveis.

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