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Gal reveste Lupicínio de contemporaneidade


Após a estreia nacional em Porto Alegre (RS), em 25 de março de 2015, o show ‘Ela disse-me assim – Canções de Lupicínio Rodrigues’, de Gal Costa, chegou ao palco da casa de espetáculos carioca Vivo Rio na noite de sábado, 28 de março. Idealizado por J. Velloso para o projeto Natura Musical, o show poderia indicar a volta de Gal à zona de conforto das interpretações de clássicos da MPB, onde ela permaneceu por algum tempo, até a revigorante virada estética provocada pelo disco/show ‘Recanto’ (2011), que realinhou sua carreira com a produção musical brasileira mais arrojada. Acompanhada por Pupillo (bateria/ percussão), Silva (teclado/ violino), Guilherme Monteiro (guitarra/ violão) e Fábio Sá (contrabaixo elétrico e acústico), talentosos músicos da cena musical contemporânea, arregimentados pelo codiretor artístico Marcus Preto, Gal Costa fez luzir o ótimo e surpreendente roteiro, com interpretações emocionantes. Ourives das canções de dor-de-cotovelo, gravado por cantores como Francisco Alves (1898 – 1952), as irmãs Linda (1919 – 1988) e Dircinha Batista (1922 – 1999), Orlando Silva (1915 – 1978) e Jamelão (1913 – 2008), Lupicínio Rodrigues (1914 – 1974) destilou (des)amor, raiva, sarcasmo e culpa, entre outros tantos sentimentos contraditórios, em canções que retratam o país romântico e passional que era (é?) o Brasil dos anos 1940 – 1950, fase áurea do compositor gaúcho. Toda essa carga dramática, que pareceria datada, ganhou refrescantes lufadas de modernidade. “Agora você vai ouvir aquilo que merece”, avisa Gal, após a citação de ‘Esses moços (pobres moços)’ (1948), iniciando uma explosiva interpretação de ‘Judiaria’ (1973), que emula a gravação roqueira feita por Arnaldo Antunes no disco ‘Ninguém’ (1995). Num momento metalinguístico do perspicaz roteiro, a cantora entoa o bolero ‘Homenagem’ (1972): “Eu agradeço estas homenagens que vocês me fazem/ Pelas bobagens e coisas bonitas, que dizem que eu fiz”, ressaltam os versos da obscura canção feita pelo homenageado Lupicínio. “Coisas bonitas” como ‘Coisas minhas’ (1958), outra raridade trazida à cena. No primeiro número mais introspectivo, Gal revisita ‘Volta’ (1957), faixa do álbum ‘Índia’ (1973), com o luxuoso auxílio de Silva nos teclados. O encantamento permanece em ‘Nunca’ (1952), outro clássico reavivado pelas ótimas divisões da cantora. Originalmente um samba, ‘Fuga’ (1959) reaparece sob a forma de tango moderno, com o contrabaixo acústico de Fábio Sá e o violino de Silva. Vertido para o carimbó, ‘Que baixo!’ (Lupicínio Rodrigues/ Caco Velho, 1945) é veículo para Gal destilar irresistíveis suingue e apuro interpretativo. Sucesso de Linda Batista, o raivoso petardo ‘Vingança’ (1951), ressurge impactante: O canto de Gal paira acima do incendiário arranjo roqueiro e da guitarra rascante de Guilherme Monteiro, levando o público ao delírio. Embalado pelo violão de Guilherme e o bongô de Pupillo, o número seguinte, ‘Paciência (Vou brigar com ela)’ (1961), prepara a atmosfera local para outro grande momento. Após comentar a interpretação que João Gilberto fez em um programa de TV, em 1971, Gal inebria a plateia com a beleza de ‘Quem há de dizer’ (Lupicínio Rodrigues/ Alcides Gonçalves, 1948). ‘Aves daninhas’ (1954) traz a magoa do compositor em momento de extrema delicadeza. ‘Ela disse-me assim’ (1959) e ‘Loucura’ (1973), lançadas por Jamelão, reaparecem, cheias de classe, assim como ‘Há um Deus’ (1957), sucesso de Dalva de Oliveira (1917 – 1972). Outra pérola esquecida há décadas volta à tona: ‘Eu não sou louco’ (Lupicínio Rodrigues/ Evaldo Ruy), samba gravado por Isaurinha Garcia (1919 – 1993), em 1949. É no ritmo da dance music que Gal encara o hit inicial de Elza Soares, ‘Se acaso você chegasse’ (Lupicínio Rodrigues/ Felisberto Martins), samba sincopado, lançado por Cyro Monteiro (1913 – 1973) em 1938. Uma comovente e significativa interpretação de ‘Esses moços (pobres moços)’ encerra o espetáculo. No esperado bis, a cantora relembra ‘Um favor’ (1972), registrada no disco ‘Caras e Bocas’ (1977). O samba-canção ‘Exemplo’ (1960), com seus inacreditáveis versos, “Que é melhor brigar juntos/ do que chorar separados”, reafirma a passionalidade de Lupicínio Rodrigues. Uma tristonha e bela ‘Felicidade’ (1947) toma conta do Vivo Rio, deixando a impressão de que ‘Ela disse-me assim – Canções de Lupicínio Rodrigues’ merece mais do que o simples registro em CD. No ano em que comemora 50 anos de carreira e 70 anos de idade, Gal Costa permanece atenta e forte. A festa está apenas começando e, ao que parece, será estratosférica!

Comentários

Marcelo disse…
Perfeita descrição!!!! :)
Alexandre. disse…
Testemunhamos uma apresentação espetacular.
Lindo texto.
Aproveito para agradecer os belos registros em fotos feitos pelo Marcelo, um deles compartilhado pela Gal.

Abraços Galcostianos.

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