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'Corpo de baile' reitera a coerência artística de Mônica Salmaso

Embalados por valsas, modinhas, toadas e outras melodias sentimentais, os quintais de Mônica Salmaso são habitados por curumins, moças donzelas, caboclos, violeiros, peixes e pássaros, enfim, por seres que constituem a riqueza cultural de um país cada vez mais onírico e remoto. Desde a sua estreia fonográfica em 1995, com o disco ‘Afro-sambas’ (Pau Brasil), contendo as famosas composições de Baden Powell e Vinicius de Moraes, Mônica vem depurando seu canto preciso em um repertório personalíssimo. Sem comprometimento com a produção autoral mais recente – ela chegou a gravar músicas de Chico César e Vanessa da Mata –, a paulistana de belo timbre grave segue buscando preciosidades ocultas, ou esquecidas, da música popular brasileira. Aos poucos ela deixou de lado certa brejeirice inicial, aprimorando um rigor estilístico que a coloca num posto único no panteão da MPB. Sua refinada alma lírica se opõe à produção vanguardista atual e ao pop mercantil perseguido pela quase totalidade das colegas de profissão. Sua arte não necessita de subterfúgios cenográficos e/ou coreográficos para acontecer. Nos discos ou nos palcos seu canto é o que realmente importa.
Sete anos após ‘Noites de gala’ (Biscoito Fino), dedicado à música de Chico Buarque, surge ‘Corpo de baile’ (Biscoito Fino). Seu terceiro songbook –  e décimo álbum de carreira – reúne composições de Guinga e Paulo César Pinheiro feitas entre as décadas de 1970 e 1980, e reitera a disposição da cantora em trilhar um caminho musical menos óbvio.  Com arranjos assinados por Tiago Costa, Luca Raele, Nelson Ayres, Teco Cardoso, Paulo Aragão, Nailor Azevedo Proveta e Dori Caymmi, o disco apresenta uma sonoridade solene, aparentemente linear. É preciso estar disposto a pisar os quintais de Salmaso, ter ouvidos livres dos sons pós-modernos, para notar as sutilezas de ‘Corpo de baile’. Com calma acompanhar as melodias atemporais de Guinga, enriquecidas pela poética peculiar de Paulo César Pinheiro. São músicas guardadas há quatro décadas, sendo ‘Bolero de satã’ a mais conhecida por ter sido primorosamente gravada por Elis Regina em dueto com Cauby Peixoto, no disco ‘Essa mulher’ (Warner, 1979). Entre as inéditas se evidenciam o choro-canção ‘Fim dos tempos’, que conta com a participação especial do Quarteto de Cordas Carlos Gomes, e o fado ‘Navegante’, faixa abrilhantada pelo bandolim de Milton Mori. Delicadezas permeiam ‘Quadrão’ e ‘Fonte abandonada’, em oposição à densidade de ‘Noturna’. As belas valsas ‘Nonsense’ e ‘Corpo de baile’ também merecem destaque, assim como a moda ‘Violada’. Em tempos de crescente patrulhamento artístico, em que novidades modernosas são pretensiosamente impostas como o suprassumo do bom gosto e contemporaneidade, em detrimento da riquíssima arte brasileira verdadeiramente atemporal, a música de Mônica Salmaso é “um descanso na loucura”.

Comentários

Marcelo disse…
Perfeita e lúcida crítica ao trabalho de Monica. Ponto pra ela , pra música de qualidade brasileira e pra gente que gosta do que é bom! Parabéns Julio pela crítica!!!
Parabéns, Júlio, pelo texto sensato e objetivo! Bela escrita. Mônica Salmaso é uma das melhores cantoras/intérpretes do que podemos chamar "nova geração" da MPB. Ela é extraordinária e, portanto, está bem distante de muitos "novos nomes" desprovidos de qualidades musicais, mas com um aparato promocional incrível. Abraços e obrigado.
Jeocaz Lee-Meddi disse…
Ouvindo o disco! Primeira leitura e o que me chega, martelando, martelando "Bolero de Satã", e a versão de Elis Regina. Não tem como não comparar, por mais que se esforce para manter uma neutralidade! Então vamos nós! Ouvindo as duas versões, a de Elis de 1979, em dueto "infernal' com Cauby Peixoto, e a de Mônica Salmaso é que perguntamos como Elis e Bethânia conseguem aquela dramaticidade musical dilacerante e nos fazer sair intactos, a querer repetir à exaustão os boleros pungentes?! A voz de Elis anasalada, aguda, quase que sopra esta canção como um punhal cravado em quem ouve, e ainda dá espaço para que entre o Cauby com todo seu esplendor dramático e singular dentro da MPB. O "Bolero de Satã" de Mônica Salmaso não dá este espaço. É uno. Seco! Introspectivo! Passa despercebido dentro deste repertório que sabe a um leve trave de fado, de melancolia portuguesa, de saudosismo lusitano! O disco soa, à princípio, como uma sofisticada trilha sonora de um filme! "Bolero de Satã" dentro deste belo trabalho só serve para fazermos ir ouvir Elis outra vez! Pronto, não teve jeito, não consegui fugir da comparação!

Jeocaz Lee-Meddi

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