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'Código Daúde' mostra que a cantora continua a tal

Neste populoso país das cantoras nem sempre os louros do reconhecimento popular recaem sobre quem merecidamente dá continuidade a excelência interpretativa, marca registrada de nossas aves canoras. A estreia fonográfica da baiana Maria Waldelurdes Costa de Santana Dutilleux, nos anos 1990, apontava para o surgimento de uma nova estrela radiante da MPB. O canto potente e esperto, e o repertório fresco, misturando tradição e modernidade, conquistaram críticos e formadores de opinião. Suas solares versões para ‘Chove chuva’ (Jorge Ben Jor), ‘Hoje eu quero sair só’ (Mu ShebabiCaxa AragãoLenine) e ‘Não identificado’ (Caetano Veloso) ganharam a programação musical de rádios do segmento adulto contemporâneo. As impactantes apresentações ao vivo confirmavam que a mulata era a tal. Inexplicavelmente o estrelato não se confirmou e aos poucos Daúde foi saindo da cena brasileira, ainda que tenha seduzido o mercado internacional – seu terceiro CD, ‘Neguinha te amo’ (Real World/ Emi Music, 2003), foi gravado em Londres.
Mais de uma década depois, ela está de volta, com ‘Código Daúde’ (Lab 344), cujo teor mantém a qualidade dos trabalhos anteriores. Produzido e arranjado pela própria artista, o álbum apresenta sonoridade moderna e sedutora. Pérolas musicais de diversas épocas emergem cintilantes, graças ao enfoque personalíssimo de Daúde. Fugindo da obviedade ao abordar canções esquecidas como as ótimas ‘Que bandeira’ (Marcos Valle/ Paulo Sérgio Valle/ Mariozinho Rocha) e ‘Minhas razões’ (Antonio Carlos/ Jocáfi), Daúde também surpreende ao dar voz a ‘Sobradinho’, sucesso da dupla Sá & Guarabyra. Sem se prender a estilos ou escolas, ela põe na mesma trilha ‘O vento’ (Rodrigo Amarante) e ‘Como dois animais’, esta com a participação do autor, Alceu Valença.
Entre a latinidade cubana de ‘Babalú’ (Margarita Lecuona), sucesso de Ângela Maria, e a viagem luso-brasileira de ‘Barco negro’ (David de Jesus Mourão/ Matheus Nunes), Daúde recria ‘Cala boca, menino’ (Dorival Caymmi) de maneira contundente, num arranjo sagaz. Do baú do sambista Oswaldo Nunes (1930 – 1991) ela traz de volta ‘Segura esse samba, Ogunhê’ (Oswaldo Nunes), num irresistível dueto com Nelson Sargento, que soaria mais explosivo sem a inclusão de ‘Falso amor sincero’, da lavra do famoso compositor mangueirense, na mesma faixa. O balanço de ‘Eu não vou mais’ (Orlandivo/ Durval Ferreira) contrasta com a delicadeza de ‘J’ai deux amours’ (Georges Konyn/ Henri Eugene Vantard/ Vincent Batiste Scotto), faixa que encerra ‘Código Daúde’ com requinte. Waldelurdes tem o borogodó das verdadeiras baianas.

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