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Martinho da Vila, enredo de samba que não atravessa


Antes de ser “da Vila”, Martinho José Ferreira era da Aprendizes da Boca do Mato, Escola de Samba carioca na qual o jovem compositor fluminense deu os primeiros passos em sua trajetória como vitorioso – e revolucionário – autor de sambas de enredo. A agremiação enrolou sua bandeira precocemente, ainda na década de 1960, quando Martinho já estava na Unidos de Vila Isabel. Parte dessa rica história está registrada em ‘Enredo’, álbum oportunamente lançado às vésperas do Carnaval, via gravadora Biscoito Fino.  Estão lá os seminais ‘Carlos Gomes’ (1957), ‘Tamandaré’ (1958), ‘Machado de Assis’ (1959) e ‘Rui Barbosa’ (1960), sambas da Aprendizes da Boca do Mato, que reverenciavam os “vultos” da nossa história, como rezava a cartilha do Estado Novo e as Escolas continuaram fazendo por muito tempo. Estreia na Vila, ‘Carnaval das ilusões’ (c/ Gemeu, 1967), sobre o imaginário infantil, já fugia da tradição de homenagear personagens históricos, e não chegou a empolgar os jurados. Contudo, Martinho seguiu burilando suas composições e vencendo a disputa dos sambas nos anos seguintes com ‘IV séculos de modas e costumes’ (1968), ‘Iaiá do cais dourado’ (c/ Rodolpho, 1969) e ‘Glórias gaúchas’ (1970). Em 1972, foi a vez da obra-prima ‘Onde o Brasil aprendeu a liberdade’, que figura obrigatoriamente em qualquer antologia de sambas de enredo. Seu andamento mais acelerado e sua letra mais compacta mudaram os rumos do desfile.
Os belos e críticos ‘Tribo dos carajás (Aruanã Açu)’ (1974) e ‘Sonho de um sonho’ (c/ Rodolpho/Tião Graúna, 1980) tiveram destinos diferentes. Enquanto o primeiro foi tirado da disputa dos sambas da Vila Isabel pelos censores, o segundo fez a Avenida cantar os ainda atuais versos, inspirados no poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade: “Um sorriso sem fúria, entre o réu e o juiz/ A clemência, a ternura por amor na clausura/ A prisão sem tortura, inocência feliz...”. Martinho foi (mais) lírico em 1984, com ‘Pra tudo se acabar na quarta-feira’, exaltação aos verdadeiros sambistas que mantêm acesa a chama das Escolas, e ousado em 1987, com ‘Raízes’ (c/ Ovídio Bessa/Azo), samba de enredo sem rimas.
Os campeões ‘Noel – A presença do poeta da Vila’ (2010) e ‘A Vila canta o Brasil, celeiro do mundo, água no feijão que chegou mais um’ (c/ Arlindo Cruz/André Diniz/Leonel/Tunico da Vila, 2013) figuram no repertório, que ainda traz duas parcerias com Luiz Carlos da Vila (da Penha), ‘Vila Isabel anos 30’ (1985) e ‘Por ti América’ (2006), além de outros menos conhecidos como o belo ‘Iemanjá, desperta!’ (1978), realçado pela interpretação poderosa de Alcione. Beth Carvalho e Mart’nália também estão entre os convidados especiais. Os arranjos de Leonardo Bruno, Rildo Hora, Ivan Paulo, Maíra Freitas e Wanderson Martins revestem de requinte a obra do eterno Zé Ferreira, embora não provoquem o arrepio provocado pelo acompanhamento de uma competente bateria. O que não chega a comprometer o bom resultado final. Martinho da Vila é enredo de samba que nunca atravessa.

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