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Em 'Redescobrir', Maria Rita se entrega à nostalgia de Elis Regina



Fenômeno que atinge diversas manifestações artísticas, o remake ou releitura contemporânea de obras (primas ou não) parece ter atingindo seu ápice. Vista como sintoma de uma hipotética crise criativa, ou causa e efeito da acomodação do público consumidor menos disposto a processar novidades, a releitura seduz igualmente artistas de diferentes gerações e a indústria cultural. O risco e a ruptura com o estabelecido foram banidos do conceito artístico recente em favor de uma aceitação mais abrangente, naturalmente visando ao lucro, ainda que tal atitude seja disfarçada quase sempre como “homenagem”. Recurso comumente empregado no cinema, principalmente nos estúdios de Hollywood, nos quais, além de recontar suas próprias histórias (‘A hora do espanto’ e ‘O vingador do futuro’, citando remakes recentes), são produzidas versões americanas de sucessos estrangeiros (‘O chamado’, ‘Água negra’), a releitura vem ganhando importância também na televisão brasileira. Entre equívocos (‘Gabriela’ e ‘Guerra dos sexos’) e acertos (‘O astro’ e ‘Ti ti ti’) a TV Globo mantém a aposta e acena com uma nova versão de ‘Saramandaia’.
A crise da indústria fonográfica deflagrou na música popular brasileira a onda de DVDs ao vivo, registros audiovisuais de indefectíveis shows geralmente revisionistas. Poucos resistem à tentação do sucesso fácil amparado no passado glorioso – próprio ou alheio. Auxiliado pela semelhança de timbres, Diogo Nogueira se apropriou da imagem de sambista e da obra de seu pai, João Nogueira (1941 – 2000) para construir sua carreira. Ele ainda busca no passado relativamente recente do samba sucessos que permanecem no inconsciente coletivo garantindo desta forma sua popularidade. Reler uma obra não é apenas reproduzi-la, é preciso conhecer seu criador, o momento da criação e, a partir daí, criar algo novo mantendo estreita ligação com o trabalho original. Um dos mais admirados artistas da MPB, Ney Matogrosso se impôs, ao longo dos anos, o desafio das releituras. Em 1994 lançou o belíssimo CD ‘Estava escrito’, dedicado a Ângela Maria, dois anos depois veio ‘Um brasileiro’, com composições de Chico Buarque e, em 2002, foi a vez de Cartola (1908 – 1980) merecer um álbum do inquieto artista. Em todos estão registradas mais do que meras cópias, estão lá o exercício de criatividade de Ney, sua interpretação inédita jogando novas luzes sobre a obra de outros grandes artistas.
Ao contrário de Diogo Nogueira, Maria Rita trilhava até agora um caminho interessante, mantando-se distante do monumental acervo de sua mãe, Elis Regina (1945 – 1982). Mas ela não resistiu ao apelo do projeto multimídia ‘Viva Elis’ patrocinado pela Nívea para lembrar os trinta anos da morte da intérprete. O que seria apenas uma série de apresentações alavancadas pela legião de saudosos admiradores de Elis se transformou no CD duplo, DVD e Blu Ray ‘Redescobrir’, por ora lançados pela Universal Music. Na contramão de como vinha conduzindo sua carreira, fugindo dos estereótipos e escolhendo apropriadamente repertórios que disfarçavam seu jeito antigo de cantar, Maria Rita voltou a provocar as comparações entre seu canto e o de Elis. Durante os 28 números pinçados do repertório da mãe, ela se mostra excessivamente reverente às interpretações originais, a ponto de (tentar) reproduzir maneirismos vocais eternizados por Elis em músicas como ‘Águas de março’ (Tom Jobim), ‘Me deixas louca’ (Armando Manzanero/ versão: Paulo Coelho) e ‘Madalena’ (Ivan Lins). Igualmente reverentes, os arranjos colaboram para o inevitável confronto, em que fica clara a ascendência da homenageada. Acompanhada pelos músicos Tiago Costa (piano e teclados), Sylvinho Mazzuca (contrabaixo), Davi Moraes (guitarra) e Cuca Teixeira (bateria), a cantora segue um roteiro cujo principal critério é enfileirar sucessos como ‘O bêbado e a equilibrista’ (Aldir Blanc/ João Bosco), ‘Tatuagem’ (Chico Buarque) e ‘Aprendendo a jogar’ (Guilherme Arantes). Pisando no Olimpo da música popular brasileira, Maria Rita não encara o hercúleo desafio de redescobrir o repertório e o canto de Elis Regina, se contentando em fazer um show de covers para fãs nostálgicos.

Comentários

Anônimo disse…
Eu redescobri, jovens descobriram, e muitos ainda vão (re)descobrir. A proposta era essa, manter viva a história da maior cantora brasileira... E posso garantir que a Maria Rita conseguiu alcançar seu objetivo!
Anônimo disse…
Só discordo de vc em um aspecto, acho que a Maria Rita, apesar de se recusar cantar canções da mãe, ela fez um som parecido com o que a mãe fazia. Vi isso já com a risada no final de A Festa, lembra a risada de Elis, é filha né?! Como escapar disso?!

Lilia
Mateus Capelo disse…
Escreveu bem, mas dentro da música (inclusive da MPB), a "releitura" ou "remake" são coisas constantes.
Preciso citar a música clássica, a exemplo? Ou Caetano, ou o redescobrimento de Gal das raízes? OU Bethânia?

vc falou sobre o caráter pessoal e problemas sociais, menos de música...

Dizer que ela imita a mãe, ok... isso já tá virando discurso de purista.
Anônimo disse…
A hipocrisia de se negar a continuar ou conceder entrevistas caso o nome da mãe viesse à tona e depois encher o bolso de dinheiro às custas de semelhança genética só sendo muito influenciável para engolir...
Maria Rita, em várias fases da carreira, demonstrou que autenticidade tem a ver com conveniência.
Homenagem? Então que tal deixar o lucro de lado para homenagear com pureza de intenções?
Cover... Pior para ela, já que, na comparação, ela não chega aos pés da mãe.

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