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A coerente diversidade rítmica de Moraes Moreira



Embora tenha dito que originalmente queria fazer um disco só de samba, Moraes Moreira incluiu outras levadas em ‘A revolta dos ritmos’, seu novo CD, lançando em julho deste ano pela gravadora Biscoito Fino. A heterogeneidade rítmica é uma característica dos trabalhos solos de Moraes, como ‘De repente’ (2005), disco de inéditas em que flertou com rap e drumm’n’bass’.
Nada mais natural para “quem veio dos Novos Baianos e não nega fogo”, como avisam os versos de ‘Cuidado Moreira’, boa incursão pelo samba de breque, homenagem ao malandro Moreira da Silva, que abre o álbum citando ainda Martinho da Vila, Dona Ivone Lara e Pixinguinha, entre outros. Citações, aliás, são recorrentes em boa parte das doze faixas de ‘A revolta dos ritmos’. O centenário do conterrâneo Jorge Amado (1912 – 2012) é o mote de ‘Feito Jorge ser Amado’ (Moraes Moreira/ Fred Góes), na qual personagens famosos do escritor convivem com outros ícones baianos como Dorival Caymmi e Carybé. O samba também está presente na bossa carioca de ‘Brasileira academia’ (Moraes Moreira) que, como o título sugere, menciona os imortais da literatura nacional. No envolvente compasso da faixa-título ouvimos ecos da turma que colocou a guitarra na cadência do samba há exatos 40 anos, com o lançamento do histórico LP ‘Acabou chorare’.
A percussão agalopada de ‘Raças e religiões’ (Moraes Moreira/ Fred Góes) dissipa o encadeamento recursivo dos temas em versos como “Eu sou ameríndio/ Sou negro sou índio/ O dono da terra”. O compositor da belíssima ‘Cidadão’ (1991) mostra melhor forma em “A praça, o povo e o poeta”, onde novamente discorre sobre o Carnaval baiano e o encontro das massas na Praça Castro Alves. Norteado pela sanfona de Meninão, o ótimo caboclinho ‘Que nem mandacaru’ (Moraes Moreira) coloca Pernambuco na roda. A “nação nordestina” é aclamada no xote ‘Nós somos sim Paraíba’ (Moraes Moreira).
Em momento mais suave, a valsa ‘A dor e o poeta’ (Moraes Moreira) tem seus versos desnecessariamente declamados por Moraes na primeira passada da letra. A esta altura, o ritmo pulsante do álbum dá lugar ao romantismo popularesco do bolero ‘No iPod do meu coração’ (Moraes Moreira), espécie de atualização tecnológica de ‘Sintonia’ (Fred Góes/ Zeca Barreto/ Moraes Moreira, 1987), aquela que foi feita “pra tocar no rádio do seu coração”. Nesta seara, a produção de Moreira soa mais sedutora do que grande parte das composições veiculadas nas rádios atualmente, muitas emulando hits de Jane e Herondy, Lindomar Castilho e outros artistas considerados bregas.  
A pop-baiana ‘Meu coração tá bombando’ (Moraes Moreira) acalma corações e prepara o ouvinte para o teor crítico de ‘O Brasil não tá pronto’ (Moraes Moreira), cuja viola chora a falta de maturidade do povo brasileiro.
‘A revolta dos ritmos’ comprova a qualidade das composições de Moraes Moreira, artista geralmente lembrado apenas por sua participação no grupo Novos Baianos, não obstante sua obra, diversa e atemporal, ultrapassar qualquer lembrança limitadora.

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