“Coisas
sagradas permanecem/ Nem o demo as pode abalar”. Os versos de ‘Recanto escuro’,
canção de onde foi retirado o título do aguardado disco de Gal Costa resume a
longeva parceria da cantora com Caetano Veloso. Dando voz
às palavras do compositor desde 1965, quando gravou ‘Sol negro’ ainda como
Maria da Graça, em dueto com Maria Bethânia, e, dois anos depois, dividiu com ele o
disco de estreia, ‘Domingo’, Gal construiu sua carreira alicerçada por grandes interpretações
de canções caetânicas. De ‘Coração vagabundo’ a ‘Divino maravilhoso’, de ‘Tigresa’
a ‘Força estranha’, de ’Mãe’ a ‘Meu bem, meu mal’, de ‘Minha voz’ a ‘Vaca
profana’, de ‘Aquele frevo axé’ a ‘Luto’, entre outras tantas que formam
verdadeira biografia musical. Recanto
pode ser um lugar aconchegante, um canto cantado novamente, um canto não
inaugural, com história, reflexivo. Recanto é ‘Relance’ entre Gal e Caetano que
assina todas as composições (em estilo próximo ao de seu disco ‘Cê’) e a
produção (em parceria com Moreno Veloso) do álbum lançado pela gravadora
Universal Music. Seis anos depois de ‘Hoje’ (Trama), CD recebido friamente
pelos críticos, ‘Recanto’ aponta novos rumos e recoloca Gal na dianteira da
produção musical contemporânea ao juntar à sua voz cristalina os sons
eletrônicos concebidos por jovens músicos cariocas. A voz madura, porém jovial,
harmoniza temas por vezes ásperos. Não há exibicionismos vocais, o canto surge
límpido em contraponto aos sons tecnológicos. Kassin –
sempre ele – responde pela programação e arranjos da maioria das faixas. Nomes
da cena alternativa como o quarteto experimental Rabotnik (Estevão Casé,
Eduardo Manso, Bruno Di Lullo e Rafael Rocha) e o Duplexx (Bartolo e Leo
Ribeiro) também contribuem para a bela e inquietante sonoridade de ‘Recanto’. Das onze
canções, apenas duas não são inéditas: ‘Madre Deus’, feita para o balé ‘Onqotô’
do grupo Corpo, e ‘Mansidão’, gravada por Jane Duboc em 1982. É incrível como a
letra de ‘Mansidão’ encaixa-se perfeitamente ao presente da cantora baiana: “Esta
voz que o cantar me deu é uma festa paz em mim”, explicitam os versos. Assim
como fez com ‘Dom de iludir’, escrita para Maria Creuza, a ‘Verdadeira baiana’
torna sua a canção feita para Jane. Gal não
precisa provar mais nada para ninguém, seu canto desde o início moderno registrou
a maioria dos grandes compositores desse país. Sua rica biografia está cifrada
e misturada à de Caetano em ‘Recanto escuro’, emocionante canção repleta de
“ilusões auditivas” e intervenções do violão de sete cordas de Luís Felipe de
Lima. Quase uma seresta nostálgico-futurista. Já ‘Cara
do mundo’ roça a lavra autoral pop moderna do Hermano Marcelo Camelo. Impressiona
por uma dissimulada singeleza que escamoteia signos enigmáticos, altamente
visuais. ‘Autotune
autoerótico’ é faixa que vem juntar-se às canções inspiradas na voz/canto de
Gal, como ‘Eu te amo’ e ‘Minha voz, minha vida’. Provocativa, a cantora brinca
com a ferramenta digital do título nos improvisos. A voz “americana e global”,
exercitada nas panelas da mãe, Dona Mariah, impõe-se impecável e desafiadora,
roçando nos cabelos antes de descer “a nota ao sol do plexo”. Poeta e musa
inspiradora em estado de puro amor e alta criação artística. “Tudo é
singular” na estranheza de ‘Tudo dói’, onde a doçura do canto de Gal suaviza
vocábulos iridescentes e hipotálamos que minguam. Viver dói. Escolhida
como música de trabalho, ‘Neguinho’ tem sua hipnótica base, assinada por Zeca Veloso,
pontuada pela guitarra psicodélica de Pedro Sá. A letra que critica o consumo
desenfreado da sociedade (“Neguinho compra três TVs de plasma, um carro, um GPS/
E pensa que é feliz”) ganha registro refinado de Gal e faz pensar na inclusão
de ‘Eu sou neguinha’ numa possível sequencia no futuro show da cantora.
“Neguinho que eu falo é nós”, sentencia. Caetano inspirou-se
em Gabriel, o filho de Gal, para fazer ‘O menino’ que “ilumina as madrugadas”,
salvador como o Menino Jesus. ‘Sexo e dinheiro’ é canção filosófica, intensa,
um verdadeiro desafio de interpretação. Gal está sublime passeando pela áspera
base. A diva cai
no batidão do funk carioca em ‘Miami maculelê’, esperta letra que cita os
bandidos santos (“São Dimas, Robbin Hood e o Anjo 45/ todos dançando comigo”) e
ressalta a ligação da música dos morros cariocas com o Miami bass norte-americano e o maculelê
de Santo Amaro da Purificação. Surpreendentemente,
‘Recanto’ termina com uma canção sem qualquer som eletrônico, ‘Segunda’, na
qual Moreno pilota todos os instrumentos. “Segunda é dia de branco/ Vou
arrastar meu tamanco”, diz a letra em viés diferente da faixa anterior, mas
ainda pisando o chão do proletariado, esteja ele nas favelas cariocas, paulistas
ou alhures. ‘Recanto’
impõe-se desde já como um dos melhores discos de Gal que reaparece serena e
segura. Que outra cantora poderia se mostrar tão ousada após quase cinco
décadas de carreira? A mulher sagrada de Caetano – e de muitos outros – continua
acima da manada.
A Universal Music reabre seu baú de preciosidades. Desta vez, a dona do maior acervo musical do país, traz duas joias do cantor, compositor e violonista Gilberto Passos Gil Moreira, recentemente eleito imortal pela Academia Brasileira de Letras. De 1971, o disco londrino, ‘Gilberto Gil’, reaparece em nova edição em vinil, enquanto ‘Refestança’, registro do histórico encontro de Gil e Rita Lee, de 1977, finalmente ganha versão digital. Gravado durante o exílio do artista baiano em Londres, o quarto LP de estúdio de Gilberto Gil foi produzido por Ralph Mace para o selo Famous e editado no Brasil pela Philips, atual Universal Music. O produtor inglês também trabalhava com Caetano Veloso, que havia lançado seu primeiro disco de exílio no mesmo ano. Contrastando com a melancolia expressada por Caetano, Gil fez um álbum mais equilibrado, dosando as saudades do Brasil...
Comentários
Paixão e distância analítica na medida certa.
Parabéns pela beleza das palavras e obrigado por despertar em mim o desejo de ouvir a profana/sagrada.