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As duas faces de Alcione

Foto: Phillipe Lima/AgNews
Nem a forte chuva que caiu sobre o Rio de Janeiro na noite deste sábado, 15 de outubro de 2011, afastou o público que lotou a casa de espetáculos Vivo Rio para ver a estreia nacional da turnê ‘Duas faces’, com a qual Alcione comemora 40 anos de carreira. Acompanhada pela fiel Banda do Sol, a cantora desfiou repertório que mescla sucessos, músicas menos conhecidas, clássicos internacionais e canções inéditas gravadas para o projeto homônimo que inclui os CDs/DVDs ‘Ao vivo na Mangueira’ e ‘Jam session’ (Marrom Music/ Biscoito Fino).
Com a potente voz em excelente condição, amplificada pelo ótimo som da casa, Alcione relembra ‘Tem dendê’ (1973) e ‘Figa de Guiné’ (1972), de Reginaldo Bessa e Nei Lopes, que marcaram sua estreia fonográfica. Recorrente na discografia da cantora, Nei também é o autor de ‘Mulher-bombeiro’, esperto samba de breque feito sob medida para a madrinha da corporação.
A aparente indiferença do público desapareceu logo aos primeiros acordes de ‘Além da cama’ (Michael Sullivan/ Carlos Colla), balada ultrarromântica do CD ‘A paixão tem memória’ (2001) – o mesmo da indefectível ‘A loba’ (Paulinho Resende/ Juninho Peralva), verdadeira carta de apresentação contemporânea da ‘Mulher ideal’ (Michael Sullivan/ Carlos Colla) representada pelo coro feminino que acompanhou a artista durante o número.
Escolhidas por votação entre fã-clubes, ‘Medo’ (Vera Veríssimo/ Roberta Miranda) e ‘Metade de mim’ (Paulo Sérgio Valle/ José Augusto) ressurgem em arranjos inferiores aos originais, mas a experiente intérprete mantém a carga dramática nas alturas. Marrom sabe tudo. O clima romântico continuou com as inéditas ‘Não me entrego a mais ninguém’ (Jefferson Jr/ Humberto Tavares) e ‘Beco sem saída’ (Telma Tavares/ Roque Ferreira) e proporciona belo momento em ‘Quem já esteve só’ (Ivor Lancellotti/ Paulo César Pinheiro), dos versos “Quem já esteve só sabe o desânimo que a noite traz”.
“Não, ninguém faz samba só porque prefere”, dizem os versos atualíssimos de João Nogueira e Paulo César Pinheiro, imortalizados por Clara Nunes e revividos com autoridade por Alcione. Ainda na seara dos grandes sambistas, a Marrom canta ‘Na mesma proporção’ (1984) de Nilton Barros e Jorge Aragão – de quem ela é a maior intérprete. Escolada na noite carioca, onde burilou seu ofício, ela cria números em espanhol, ‘Todavia’ (Armando Manzanero), e em italiano, ‘Estate’ (Bruno Martino/ Bruno Brighetti) – tema difundido por João Gilberto – mas arrasa mesmo na francesa ‘Comme ils disent’ (Charles Aznavour).
‘Faz uma loucura por mim’ (Chico Roque/ Sérgio Caetano), que rendeu à cantora seu melhor clipe, traz o show de volta ao cancioneiro passional tupiniquim tão caro aos fãs. Não tem amor analisado com Alcione, ela não tenta suavizar as cores fortes da paixão com “barulhinhos bons”: “Toma um porre, picha um muro que me adora!”.
Entre a exaltação ao "negão de tirar o chapéu" ('Meu ébano', de Nenéo e Paulinho Rezende) e à Mangueira ('Verde e rosa', de Sylvio César), a cantora ainda encontra espaço para o lirismo de 'Cajueiro velho' (João Carlos) e 'Rua sem sol' (Mário Lago/ Henrique Gandelmann).
Aqueles que criticam o repertório romântico da cantora talvez não percebam a presença de compositores conceituados como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Fátima Guedes em seus discos. Assim como canta a dor de cotovelo mais popular de ‘Menino sem juízo’ (Chico Roque/ Paulinho Resende), ela também sabe dar voz a igualmente bela ‘Sem mais adeus’ (Francis Hime/ Vinicius de Moraes). Sem preconceitos, recusando rótulos limitadores, Alcione expõe mais uma vez as ‘Duas faces’ (Altay Velloso) que fazem dela uma das melhores cantoras brasileiras.

Comentários

Kamille disse…
Eu também tava lá, não te vi! Mas vi o Mauro várias vezes no telão (claro) e depois encontrei com ele por acaso. Foi demais, né? Mas vi umas pessoas reclamando da parte mais "sofisticada" do repertório...
Ela poderia fazer dois shows distintos, mas acho boa essa história dela injetar canções mais "sofisticadas" no povão.
Jeocaz Lee-Meddi disse…
Alcione é sempre a garantia de um bom show. Para ser sincero, gosto mais dela no palco do que em disco, é nas luzes dos holofotes que ela transcede a sua magnitude de estrela, sua infinita verve dramática.
Quem acompanha a Alcione, sabe que ela sempre teve o seu lado popularesco e, paralelamente, defensora de grandes nomes da MPB. Infelizmente, no atual contesto musical, MPB virou elite, sinônimo de sofisticação. Em 1979, quando Alcione apresentava em horário nobre na poderosa TV Globo o "Alerta Geral", dividia o palco com grandes nomes, como Gal Costa, cantava todos o ícones da MPB, mostrando-se popularmente sofisticada. Naquela época o povão ouvia MPB nas grandes paradas, e sofisticação era uma mera coadjuvante do bom gosto popular.
Concordo Júlio, o povão precisa ouvir canções de um repertório "mais sofisticado".

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