Pular para o conteúdo principal

A delicada alma lírica de Mônica Salmaso



Em seu novo álbum, ‘Alma lírica brasileira’ (Biscoito Fino), Mônica Salmaso reafirma seu posto único no panteão das cantoras nacionais. A paulistana passa longe do pop feito para tocar no rádio e, diferentemente das colegas surgidas nas últimas décadas, não compõe. Sem perseguir o sucesso fácil, Mônica constrói sua refinada discografia graças à habilidade em pescar pérolas do cancioneiro nacional das mais variadas épocas.
Mas de nada (ou muito pouco) serviria tal qualidade sem a voz grave e melodiosa que não presta tributos à Marisa Monte, ainda hoje farol para novatas – e outras nem tanto. Mônica reveste canções tão díspares quanto ‘Carnavalzinho (Meu carnaval)’ (Lisa Ono/ Mário Adnet) e ‘Derradeira primavera’ (Tom Jobim/ Vinicius de Moraes, 1963) com afinação e equilíbrio que distanciam seu canto elegante das banalidades contemporâneas.
Acompanhada por Teco Cardoso (sopros) e Nelson Ayres (piano), a cantora – responsável por discreta percussão – cria ambiência camerística equilibrando-se entre o erudito e o popular, por vezes fundindo os dois conceitos, como acontece com a rebuscada ‘Lábios que beijei’ (J. Cascata/ Leonel Azevedo, 1937), sucesso de Orlando Silva e um dos melhores momentos de ‘Alma lírica brasileira’. Gravada por Elizeth Cardoso (1920 – 1990), Zizi Possi e Maria Bethânia, a belíssima ‘Melodia sentimental’ (Heitor Villa-Lobos/ Dora Vasconcelos, 1958) ganha delicada versão, comprovando o talento de Mônica em recriar canções, sem medo de comparações, assumindo os riscos.
‘Samba erudito’ (Paulo Vanzolini) zomba dos limites entre a canção popular e a música clássica (“Fui ao fundo do mar como o velho Piccard/ Só pra me exibir, só pra te impressionar”). Ironia também contida em ‘Meu rádio e meu mulato’ (Herivelto Martins, 1938), samba esperto do repertório de Carmen Miranda (1909 – 1955), resgatado por Zélia Duncan no excelente CD ‘Eu me transformo em outras’ (2004), agora apresentado por Mônica com insuspeitada – e sempre elegante – ginga. 
Após visitar a obra de Chico Buarque no disco ‘Noites de gala, samba na rua’ (2007), que rendeu turnê e registro em DVD, Mônica reconta ‘A história de Lily Braun (Edu Lobo/ Chico Buarque). Recentemente descoberta por cantoras dos mais variados quilates, a canção criada para o balé ‘O grande circo místico’ (1983) ganha, enfim, versão que não persegue o registro definitivo de Gal Costa. A diva baiana, aliás, tem outro clássico de seu repertório revisitado, trata-se de ‘Trem das onze’ (Adoniran Barbosa, 1965) que desliza suavemente através do arranjo econômico.
Com habitual sensibilidade, Mônica conjuga poema do barroco Gregório de Matos (1636 – 1695), ‘Mortal loucura’, musicado por Zé Miguel Wisnik com o clima interiorano de ‘Cuitelinho’, tema folclórico recuperado por Antônio Xandó, adaptado por Paulo Vanzolini.
Sem os arroubos passionais tão característicos ao canto feminino na MPB, percorrendo caminhos impensáveis para uma artista contemporânea, explicitando o valor do hoje desprezado (por muitos) formato de álbum, Mônica Salmaso reafirma a importância da arte de cantar, de recriar a alma lírica de nossos compositores. No país das cantoras, isso não é pouco.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Joias musicais de Gilberto Gil são reeditadas

               A Universal Music reabre seu baú de preciosidades. Desta vez, a dona do maior acervo musical do país, traz duas joias do cantor, compositor e violonista Gilberto Passos Gil Moreira, recentemente eleito imortal pela Academia Brasileira de Letras. De 1971, o disco londrino, ‘Gilberto Gil’, reaparece em nova edição em vinil, enquanto ‘Refestança’, registro do histórico encontro de Gil e Rita Lee, de 1977, finalmente ganha versão digital.             Gravado durante o exílio do artista baiano em Londres, o quarto LP de estúdio de Gilberto Gil foi produzido por Ralph Mace para o selo Famous e editado no Brasil pela Philips, atual Universal Music. O produtor inglês também trabalhava com Caetano Veloso, que havia lançado seu primeiro disco de exílio no mesmo ano. Contrastando com a melancolia expressada por Caetano, Gil fez um álbum mais equilibrado, dosando as saudades do Brasil...

50 anos de Claridade

Clara Nunes (1942 – 1983) viu sua carreira deslanchar na década de 1970, quando trocou os boleros e um romantismo acentuado pela cadência bonita do samba, uma mudança idealizada pelo radialista e produtor musical Adelzon Alves. Depois do sucesso do LP ‘Alvorecer’, de 1974, impulsionado pelas faixas ‘Menino deus’ (Mauro Duarte/ Paulo César Pinheiro), ‘Alvorecer’ (Délcio Carvalho/ Ivone Lara) e ‘Conto de areia’ (Romildo/ Toninho Nascimento), a cantora mineira reafirmou sua consagração popular com o álbum ‘Claridade’. Lançado em 1975, este disco vendeu 600 mil cópias, um feito excepcional para um disco de samba, para uma cantora e, sobretudo, para um disco de samba de uma cantora. Traço marcante na trajetória artística e na vida de Clara Nunes, o sincretismo religioso está presente nas faixas ‘O mar serenou’ (Candeia) e ‘A deusa dos orixás’, do pernambucano Romildo e do paraense Toninho Nascimento, os mesmos autores de ‘Conto de areia’. Eles frequentavam o célebre programa no qual Adelzon...

Atrás do Trio Elétrico*

A menos de dois meses do Carnaval, os ensaios técnicos na Marquês de Sapucaí e nas quadras das escolas de samba bombam e os blocos de rua se preparam. Mas existe uma turma de foliões que foge da batucada carioca, preferindo o agito baiano, embalados pelos trios elétricos. “Se você for sozinho vai encontrar muito carioca por lá”, diz o comerciante Roberto Alves, 32 anos, apaixonado pelo Carnaval da Bahia. Para ele, falta a organização na folia do Rio. “Fiquei aqui em 2008 e detestei”, conta o moço que participou de sua primeira micareta (Carnaval fora de época) em 1996, em Belo Horizonte. “Tenho uns cem abadás”, gaba-se Roberto, que já garantiu mais alguns para este ano. Outro carioca, Rodrigo Carvalho, 28 anos, começou a pagar pelos abadás em março do ano passado. “Vou para Salvador há quatro anos seguidos. O clima é ótimo, não é pesado como nas raves”, compara ele, que dividirá um apartamento com 14 amigos durante a folia dos trios. “O mais requisitado é o Me Abraça, o abadá cu...