Eclipsado pelo axé music, o tradicional samba de roda baiano norteia ‘Santo de Casa’, projeto da cantora Mariene de Castro registrado ao vivo no Teatro Castro Alves, em Salvador (BA), no dia 15 de fevereiro de 2009, distribuído em fevereiro deste ano pela gravadora Universal Music. Em uma hora e meia de show, a cantora conjuga sambas, cocos, cirandas, maracatus, pontos de Candomblé e temas folclóricos.
Imagens de santos católicos e orixás africanos, esteiras, altar no proscêncio e a réplica de uma casa de pau a pique no fundo do palco, compõem o rústico cenário onde Mariene revela o dengo que a nega tem: presença luminosa e voz quente que lembra a conterrânea Margareth Menezes, porém com mais doçura.
O repertório afro-baiano é pontuado pelas composições de Roque Ferreira, que encontraram na voz da cantora interpretação adequada, ora buliçosa (‘Abre caminho’, ‘Chico e Chica’), ora devotada (‘Samba de terreiro’, ‘Vi mamãe da areia’). Autor recorrente nos recentes álbuns de Maria Bethânia, Roque ainda compôs ‘Temporal’, vinheta que abre o espetáculo, o coco de embolada Garaximbola’ – deixa para a participação de várias e maravilhosas baianas típicas –, o coco ‘Quebradeira de coco’ e o samba ‘De maré’ (com Toninho Geraes). A bonita ‘Prece ao pescador’ (com J. Velloso) atesta as bênçãos do exigente compositor ao projeto da amiga.
Outro ilustre baiano não poderia ficar de fora: Mariene condensa clássicos de Dorival Caymmi (1914 – 2008) no pout-pourri que reúne ‘Lá vem a baiana’, ‘A vizinha do lado’, ’Requebre que eu dou um doce’ e ‘Vatapá’. Caymmi ainda é relembrado em ‘Rosa morena’ e ‘Canção da partida (minha jangada)’. A obra do autor de ‘O que é que a baiana tem?’, canção que eternizou iconograficamente suas conterrâneas, parece feita na medida para as canoras da terra: não basta ouvir, tem que ver Mariene interpretando Caymmi.
O momento menos luminoso do show acontece quando a baiana passeia pelo clima soturno de ‘Quando eu me chamar saudade’ (Nelson Cavaquinho/ Guilherme de Brito). Já ‘Na paz de Deus’ (Beto Sem Braço, Arlindo Cruz e Sombrinha), lançada por Alcione em 1986, combina perfeitamente com o repertório solar. Aliás, Mariene ressalta com propriedade a origem baiana de ‘Ilha de maré’ (Walmir Lima/ Lupa) e ‘Não deixe o samba morrer’ (Aloísio/ Edson), lançados pela maranhense na década de 1970. A ‘Falsa baiana’ do mineiro Geraldo Pereira (1918 – 1955) também retorna com ginga e graciosidade.
Compositor aparentemente fora do contexto do show, Chico César é lembrado no pout-pourri de cirandas com sua ‘Béradêro’, ao lado das inevitáveis (?) ‘Quem me deu foi Lia’ (Baracho) e ‘Mulher rendeira’ (Zé do Norte).
Tudo fica ainda mais bonito quando Mariene pisa forte no terreiro e saúda as divindades africanas Yemanjá, Iansã e Oxum, os santos católicos São Jorge, Cosme e Damião – com a participação das crianças do Grupo Pim – e os caboclos costumeiramente ligados à Umbanda. A celebração à vida tão marcante no Candomblé salta aos olhos e aos ouvidos durante toda a apresentação da cantora que não tira os pés do chão. No bailado característico, ela desliza seus pés, requebrando faceira, numa roda de samba a léguas dos trios elétricos e do marketing das musas do axé music que há tempos se distanciaram da raiz africana.
Apesar do marcante caráter regional, ou principalmente por causa dele, o trabalho de Mariene de Castro merece ser (re)conhecido.
Comentários