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Os muitos caminhos musicais de Fafá de Belém

Em temporada iniciada no dia 27 de janeiro, Fafá de Belém está em cartaz no Teatro Rival Petrobras até amanhã, com show baseado no CD ‘Piano & Voz’, lançado em 2002. Acompanhada pelo pianista João Rebouças, a cantora, em plena forma vocal, apresenta um roteiro que entrelaça canções de Chico Buarque, Aldir Blanc, Michael Sullivan e Paulo Massadas, criando um mosaico de sucessos reunidos em 36 anos de carreira. A segunda noite do espetáculo, que tinha como convidado especial o grupo de samba ‘Casuarina’, começou com o bolero ‘Foi assim’ (Paulo André/ Ruy Barata), hit do disco Água (1977) e a seminal ‘Tamba-tajá’ (Waldermar Henrique), faixa que deu nome ao primeiro álbum, lançando em 1976. No bloco de canções buarqueanas Fafá recorre à velha dramaticidade em ‘Minha história’ e ‘Gota d’água’. Exercita sedução marota em ‘Sob medida’, acerta na interpretação sem excessos de ‘Olhos nos olhos’ e soa teatral em ‘Tanto mar’, pretexto para as falas sobre Portugal, país onde é bastante popular. Neste momento, surpreendentemente, a cantora sai da zona de conforto e apresenta uma bela canção portuguesa contemporânea, ‘Ele passou por mim e sorriu’, do grupo Deolinda, de versos inquietantes como “Sei que a chuva é grossa, que entope a fossa/ que o amor é curto e deixa mossa”. O que causou certo estranhamento no público que certamente esperava pelos fados que renderam CD, lançado em 1992 no mercado português.
Outro momento de conexão com o presente se dá na participação do grupo carioca Casuarina, com o qual Fafá relembra ‘Para um amor no Recife’ (Paulinho da Viola), faixa do disco ‘Crença’ (1980), para depois se aproximar do samba nos clássicos ‘Acontece’ (Cartola) e ‘Foi um rio que passou em minha vida (Paulinho da Viola). A guarânia ‘Nuvens de lágrimas’ (Paulo Debétio/ Paulinho Rezende) dá o tom do terceiro ato, baseado nos sucessos radiofônicos colecionados pela cantora em sua fase mais popular. São dessa época ‘Meu disfarce’ (Carlos Roque/ Carlos Colla) e ‘Memórias’ (Leonardo). No bis, contrariando a platéia que pedia por ‘Vermelho’ (Chico da Silva), Fafá cantou as belas ‘Devolvi’ (Adelino Moreira) e ‘Tortura de amor’ (Waldick Soriano), faixas do ótimo CD ‘Maria de Fátima Palha de Figueiredo’ (2000).

Olhando para o passado

Aos 55 anos, Fafá de Belém mantém um alcance vocal excelente. Herdeira direta de Ângela Maria, tem nos arroubos dramáticos uma de suas principais características. Como boa cantora brasileira, a legitimidade de sua carreira vem do seu canto forte e sedutor, a despeito do carisma incontestável. Ao longo de quase quatro décadas gravou composições de Milton Nascimento, Tom Jobim, Sueli Costa, Cacaso, além dos compositores paraenses, como Paulo André e Ruy Barata. Nos anos 1980, com explosão do pop rock tupiniquim, viu sua carreira sair dos trilhos – assim como tantas outras intérpretes que, pressionadas (ou não) pelas gravadoras, passaram a buscar outros estilos, gravando música sertaneja, lambada e canções mais popularescas (quase sempre assinadas pela dupla Sullivan e Massadas), em busca de vendagens. Desde o ano 2000, quando lançou o já citado ‘Maria de Fátima... ’, Fafá vem olhando para o passado em discos como ‘Piano & voz’, ‘Tanto mar’ (2005), dedicado à obra de Chico Buarque, e ‘Fafá de Belém ao vivo’, primeiro DVD, de caráter retrospectivo, gravado no Theatro da Paz, em Belém do Pará. Descontado o registro áudio-visual em que a maioria dos cantores revisa suas carreiras, percebe-se um resgate da fase inicial, mais ligada à MPB. Caminho percorrido por Simone, ainda na década de 1990, a partir de ‘Café com leite’, CD dedicado à obra de Martinho da Vila. Nem por isso a baiana livrou-se de vez de antigos rótulos e ainda hoje há quem torça o nariz para o seu trabalho.
Certamente os mais afoitos dirão que Fafá está acomodada, porém é necessário cuidado na abordagem desta questão. O mercado musical passa por mudanças significativas desde o advento da internet e suas possibilidades aparentemente ilimitadas. A pirataria e os downloads minaram o poder das gravadoras. Uma nova cantora não precisa mais do aparato das multinacionais para construir uma carreira. Aliás, as multinacionais que ainda existem tentam desesperadamente se adaptar às novidades tecnológicas, culturais e sociais, sob pena de desaparecerem de vez. A outra face desta moeda é a rápida divulgação de novos talentos que alimentam a indústria, sempre ávida por novidades. A estrela de hoje certamente será eclipsada por uma mais nova amanhã. A “sensação do momento” é perseguida intensamente a cada dia. A segmentação (em vários níveis) criou barreiras para a divulgação do trabalhado dos artistas, principalmente os já estabelecidos, com raras exceções. Há quanto tempo nem mesmo a incansável Maria Bethânia não emplaca um sucesso radiofônico que ultrapasse as fronteiras do eixo Rio - São Paulo? O que é considerado sucesso num momento em que o CD só tem algum valor para fãs conscientes que resistem às falsificações? As divas de hoje, aquelas que realmente ainda produzem hits nacionais, estão em cima de trios elétricos, de onde saem amparadas por um batalhão de assessores de imprensa, produtores, publicitários e administradores: a música é veículo para ganhos econômicos, quando estes deveriam ser consequência de um bom trabalho. Como exigir um novo sucesso de Fafá se as rádios mal tocam suas antigas canções? É negado às novas gerações o acesso ao repertório que fica reduzido a poucas músicas. Isso dificulta ainda mais a renovação do próprio público e da discografia da artista: seus antigos sucessos passam a ser “garantia” de casa cheia de antigos fãs.
Uma aura machista parece pairar sobre o rádio brasileiro. Cantores contemporâneos à nossa diva paraense – e até mesmo alguns que surgiram antes dela – têm suas produções executadas diariamente nas programações. Mesmo aqueles que perderam voz e viço durante a longa estrada. Nesta mesma encruzilhada, encontram-se outras intérpretes brilhantes. Como se vê, não é fácil ser cantora no país das cantoras. Cabe à Fafá de Belém adaptar-se, buscando novos ares para sua carreira (sem desprezar o passado), conectando-se a novos compositores e músicos, como sinaliza o espetáculo por ora em cartaz. Talento ela tem de sobra.

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