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O samba maduro de Zeca


“Pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza, senão não se faz um samba, não” dizia Vinicius de Moraes. Tristeza pode não ser o sentimento exato, mas certa dose de melancolia já presente em ‘Uma prova de amor’, CD lançado por Zeca Pagodinho em 2008, mostra a cara sem cerimônias em ‘Vida da minha vida’ (Universal Music), vigésimo - primeiro disco do sambista, dedicado à madrinha Beth Carvalho.
A voz mais grave, conseguida nas madrugadas da vida, desce redonda como cerveja gelada no repertório onde uma ou outra concessão à receita do (fácil) sucesso radiofônico, caso de ‘O puxa-saco’ (Alamir/ Roberto Lopes/ Levy Vianna) e ‘O garanhão’ (Zé Roberto), não embaçam o ótimo repertório.
Pinçada do CD ‘Batucando’ lançado por Moacyr Luz em 2009, a faixa-título teve sua beleza realçada por Zeca que já havia participado da gravação original da parceria de Luz e Sereno.
Pagodinho foi feliz no resgate de ‘Poxa’, (único) sucesso de Gilson de Souza em 1975 e, não por acaso, a música foi escolhida para ‘puxar’ o álbum nas rádios. Ainda na seara das regravações, ‘Um real de amor’, de Raimundo Fagner e Brandão, é boa surpresa.
Beto Sem Braço é relembrado em ‘Chama de Saudade’ (com Serginho Meriti), faixa de beleza realçada pelo arranjo.Artista dos mais aplaudidos na gravação do primeiro DVD de Dona Ivone Lara ano passado, no Canecão, Zeca traz para seu repertório um clássico da grande dama da Serrinha e de seu parceiro mais constante, Délcio Luiz. ‘Candeeiro da vovó’ se destaca pela excelente interpretação e pelo arranjo que traz a participação especial da Velha Guarda do Império Serrano.
Presença certa nos discos do sambista, a Velha Guarda da Portela faz luxuosa participação em ‘Dolores e suas desilusões’, mais uma belíssima parceria de Monarco e Mauro Diniz que reafirma a realeza dos portelenses.
Falando em baluartes, Nelson Sargento divide os vocais com Pagodinho na sua ‘Encanto da paisagem’ que exalta a vida nos morros da cidade, em tom nostálgico, outro momento assertivo do disco.
O esperado dueto de Zeca e Alcione em ‘Quem passa vai parar’ (Efson/ Marquinhos PQD/ Carlito Cavalcanti) soa apenas correto. A sensação é de que a dupla poderia render mais.
Quase sempre despercebida por causa dos sambas alegres e/ou sacanas, a dor de cotovelo está bem representada nas inéditas ‘Hoje sei que te amo’ (Nelson Rufino), ‘Desacerto’ (Toninho Geraes/ Fabinho do Terreiro/ Randley Carioca) e ‘Pela casa inteira’ (Almir Guineto/ Adalto Magalha/ Fred Camacho).Talvez ‘Vida da minha vida’ represente um novo estágio na carreira do sambista. Seu repertório adulto, com arranjos sofisticados, passa longe do lugar comum do pagode romântico que é tocado nas rádios populares.
O samba dolente, próximo daquele feito pelos grandes mestres de outrora, pode causar estranheza aos mais desavisados, mas os indícios deste amadurecimento de Zeca que sempre teve sua imagem ligada à peraltice, à molecagem, já apareciam em seus últimos trabalhos. A resposta pode estar na inédita ‘Orgulho do vovô’, parceria com Arlindo Cruz: “que meu neto seja herdeiro do meu amor pelo samba” reza Pagodinho. O tempo não pára.

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