Pular para o conteúdo principal

Depois que o visual virou quesito...


Finalmente, para a alegria daqueles que adoram 'novidades', Paulo Barros ganhou um Carnaval pela Unidos da Tijuca. Depois de carros alegóricos como DNA, ETs, vampiros, etc.., o carnavalesco que quer recriar o desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, convocou a 'Liga da Justiça' para derrotar o sambista, este ser do século passado que ainda teima em querer participar do Carnaval carioca. Nada incomum numa época em que o público está mais interessado em ver celebridades passando pela Avenida, do que com o próprio samba - cada vez mais relegado ao segundo plano.
Então tome Batmans, Homens Aranhas, Dick Tracys e muitos outros personagens americanos que ficariam melhor em algum musical da dupla Charles Moeller e Cláudio Botelho - outros dois cultuadores da estética norte-americana. O desfile proposto por Paulo Barros prescinde do samba de enredo: ele pode acontecer com qualquer outro ritmo, mesmo estrangeiro.
Quando Ismael Silva fundou a 'Deixa Falar', em 1926, deu o nome de Escola de Samba ao grupo porque nas imediações da Rua Maia de Lacerda, no Estácio, havia uma Escola Normal que formava professores para a rede escolar municipal. A Escola de Samba formaria professores do ritmo que viria a ser um dos símbolos nacionais.
A própria criação das Escolas de Samba resultou do processo de apropriação da estrutura dos cortejos dos ranchos e das grandes sociedades que faziam o Carnaval no início do século 20. Ninguém pode negar as transformações pelas quais o desfile das escolas vem passando desde que foram oficializados em 1935, mas será impossível o equilíbrio entre tradição e modernidade?
Nos anos 60 o sambista assistiu a incorporação de elementos externos à sua tradição. A figura do carnavalesco deu novo sentido ao desfile ao dar destaque para o visual das escolas, o samba e sua dança deixaram de ser os únicos fatores importantes. Fernando Pamplona, professor da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, e Arlindo Rodrigues, cenógrafo e figurinista, transformaram para sempre o desfile, a partir do enredo 'Chica da Silva', apresentado pelo Salgueiro.
No início da década de 70, sambistas como Candeia e Zé Kéti se afastaram da Portela depois que a disputa do samba de enredo foi aberta a compositores profissionais que nada tinham a ver com aquela realidade. Na mesma década viu-se a ascensão definitiva dos carnavalescos, a estética do luxo virou padrão a partir dos campeonatos vencidos pela Beija-Flor, com Joãozinho Trinta (que já havia se destacado no Salgueiro): plumas, carros alegóricos gigantescos - e verticais - além de muito brilho ditaram as regras para as outras agremiações.
Candeia, junto com outros sambistas descontentes com o rumo do desfile, fundou a Quilombo, Escola de Samba que tinha como proposta manter as tradições. "Escola de Samba é povo na sua manifestação mais autêntica! Quando o samba se submete a influências externas, a escola de samba deixa de representar a cultura de nosso povo", decretou o mestre.
Com a polêmica criação da Passarela do Samba, o desfile ganhou proporções ainda maiores, virou veículo para a exposição de celebridades, local onde são fechados negócios - muitos deles sem a menor ligação com o samba.
Não por acaso Beija-Flor e Imperatriz Leopoldinense são as grandes vencedoras da Era Sambódromo, sempre luxuosas e perfeitas aos olhos dos julgadores. A Escola de Nilópolis vem se especializando em enredos patrocinados. Escolas como a Portela e a Mangueira historicamente não se dão bem quando resolvem fugir de suas tradições - este ano a escola de Cartola, que já vem se distanciando de sua autêncidade desde que passou a dar maior destaque para comissões de frente teatralizadas, resolveu dramatizar sua até então intocável e inconfundível bateria. Amargou um sexto lugar. O desfile da azul e branco de Oswaldo Cruz serviu, mais uma vez, para se constatar que modernidade nem sempre é sinônimo de beleza e, sobretudo, de emoção.
Enquanto outra Escola tradicional, a Império Serrano, não consegue se manter no desfile principal, assistimos à ascensão da Grande Rio, Escola-síntese do fenômeno da fama instantânea, com suas alas repletas de celebridades e enredos vergonhosos como o deste ano, sobre o camatore de uma cervejaria.
Desde que surgiu, a Escola de Samba viu seu verdadeiro sentido ser deturpado e, mesmo quando alguns decretam seu desaparecimento, ela insiste em continuar viva. Essa é grande a esperança e satisfação daqueles que realmente gostam do samba e de sua mais rica organização.



"Depois que o visual virou quesito/Na concepção desses sambeiros/O samba perdeu a sua pujança/Ao curvar-se à circunstância/Imposta pelo dinheiro/E o samba que nasceu menino pobre/Agora se veste de nobre/No desfile principal/Onde o mercenarismo/Impõe a sua gana/E o sambista que não tem grana/Não brinca mais o carnaval..." ('Visual', samba de Pintado e Neném, gravado por Beth Carvalho no disco 'De pé no chão', em 1978)

Comentários

Carla disse…
O seu olhar não é simplesmente crítico. É cristalino. Através dele eu pude ver e entender o que a ilusão do luxo da fantasia é capaz de encobrir. Agora, cá estou viajando na melancolia. Saudades de um tempo que não volta mais, de outros carnavais.
João disse…
hehe... parabéns!!! não é nem uma questão de ponto de vista... é uma constatação!!!
Anônimo disse…
O que eu posso falar alêm de concordar plenamente? E alêm disso, obrigado pela aula.
Unknown disse…
Este desabafo vem ao encontro da grande questão que a sociedade moderna precisa resolver: encontrar o equilíbrio entre a história, a tradição e os atalhos que a era tecnológica nos oferece.
Numa básica comparação, crianças não brincam mais de pular amarelinha ou pique-esconde. Se digladiam e se desafiam virtualmente por meio de jogos que são verdadeiras simulações de guerra na internet.
É July, o samba também está sucumbindo à modernidade, afinal o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro há muito é uma verdadeira fábula de dinheiro e contratos comerciais.
Também gostei da aula rsrsrsrsrsrs

Postagens mais visitadas deste blog

Joias musicais de Gilberto Gil são reeditadas

               A Universal Music reabre seu baú de preciosidades. Desta vez, a dona do maior acervo musical do país, traz duas joias do cantor, compositor e violonista Gilberto Passos Gil Moreira, recentemente eleito imortal pela Academia Brasileira de Letras. De 1971, o disco londrino, ‘Gilberto Gil’, reaparece em nova edição em vinil, enquanto ‘Refestança’, registro do histórico encontro de Gil e Rita Lee, de 1977, finalmente ganha versão digital.             Gravado durante o exílio do artista baiano em Londres, o quarto LP de estúdio de Gilberto Gil foi produzido por Ralph Mace para o selo Famous e editado no Brasil pela Philips, atual Universal Music. O produtor inglês também trabalhava com Caetano Veloso, que havia lançado seu primeiro disco de exílio no mesmo ano. Contrastando com a melancolia expressada por Caetano, Gil fez um álbum mais equilibrado, dosando as saudades do Brasil...

50 anos de Claridade

Clara Nunes (1942 – 1983) viu sua carreira deslanchar na década de 1970, quando trocou os boleros e um romantismo acentuado pela cadência bonita do samba, uma mudança idealizada pelo radialista e produtor musical Adelzon Alves. Depois do sucesso do LP ‘Alvorecer’, de 1974, impulsionado pelas faixas ‘Menino deus’ (Mauro Duarte/ Paulo César Pinheiro), ‘Alvorecer’ (Délcio Carvalho/ Ivone Lara) e ‘Conto de areia’ (Romildo/ Toninho Nascimento), a cantora mineira reafirmou sua consagração popular com o álbum ‘Claridade’. Lançado em 1975, este disco vendeu 600 mil cópias, um feito excepcional para um disco de samba, para uma cantora e, sobretudo, para um disco de samba de uma cantora. Traço marcante na trajetória artística e na vida de Clara Nunes, o sincretismo religioso está presente nas faixas ‘O mar serenou’ (Candeia) e ‘A deusa dos orixás’, do pernambucano Romildo e do paraense Toninho Nascimento, os mesmos autores de ‘Conto de areia’. Eles frequentavam o célebre programa no qual Adelzon...

Atrás do Trio Elétrico*

A menos de dois meses do Carnaval, os ensaios técnicos na Marquês de Sapucaí e nas quadras das escolas de samba bombam e os blocos de rua se preparam. Mas existe uma turma de foliões que foge da batucada carioca, preferindo o agito baiano, embalados pelos trios elétricos. “Se você for sozinho vai encontrar muito carioca por lá”, diz o comerciante Roberto Alves, 32 anos, apaixonado pelo Carnaval da Bahia. Para ele, falta a organização na folia do Rio. “Fiquei aqui em 2008 e detestei”, conta o moço que participou de sua primeira micareta (Carnaval fora de época) em 1996, em Belo Horizonte. “Tenho uns cem abadás”, gaba-se Roberto, que já garantiu mais alguns para este ano. Outro carioca, Rodrigo Carvalho, 28 anos, começou a pagar pelos abadás em março do ano passado. “Vou para Salvador há quatro anos seguidos. O clima é ótimo, não é pesado como nas raves”, compara ele, que dividirá um apartamento com 14 amigos durante a folia dos trios. “O mais requisitado é o Me Abraça, o abadá cu...